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Romance escrito em tempo real

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Adestrador de Sentimentos

Cética, como sempre fui nunca poderia imaginar-me na sala de um adestrador de sentimentos. Estamos, há horas, esperando por ele. Na sala enorme de uma velha fazenda, mães amamentam, homens conversam e um senhor bem velhinho saboreia, de cócoras, o seu cigarro de palha. Nunca consegui ficar assim feito ele.
O que mais me causa admiração é a paciência chinesa com que todos esperam, enquanto eu quase entro em ebulição. Sempre pensei que, se mudássemos para o campo, nunca mais sentiria stress. O que eu não imaginava era que um dia sentisse falta da poluição sonora.
Sinto-me surda, ante tanto silêncio. De dois em dois minutos, confiro a lentidão dos ponteiros do meu relógio de pulso. A espera infinita é quebrada pelo ranger da velha porta se abrindo. O imenso portal emoldura o adestrador. Ele tem os cabelos brancos, desalinhados, os olhos profundamente azuis, e uma pele que, percebe-se fora clara um dia, resultado do sol escaldante daquele bendito lugar.
Minutos depois, ele olha para um rapaz de camisa azul que fumava em pé na porta e faz sinal para que o acompanhe.
Num ímpeto, atravessei a sala e disse a ele que aquele rapaz havia chegado depois de mim. Ele me sorriu e disse que não atendia por ordem de chegada. Decepcionada, senti meu rosto tremer:
- Como? Nunca ouvi falar em tal coisa...
Como se não me ouvisse, o rapaz entrou e fechou a porta.
A mulher que amamentava disse calmamente:
- Não é por ordem de chegada. Seu Gumercindo é quem escolhe as pessoas que serão atendidas primeiro. Depende da necessidade de cada uma.
- Quem é esse homem, Deus?
Ignorando a minha ironia, ela respondeu:
- Depois das cinco horas, ele não atende mais.
- O último que saiu ficou uma hora e quarenta minutos. Desse jeito ninguém será atendido mais hoje. De que planeta é esse homem? Ele não gosta de ganhar dinheiro?
- Dinheiro? Seu Gumercindo não cobra!
Ela tentou me explicar o que o adestrador fazia, mas disse que eu só entenderia, quando entrasse naquela sala. Entrar? Era tudo o que eu queria!
Para minha surpresa, não se passaram cinco minutos e o rapaz de camisa azul cruzou a sala. Aproveitei a porta entreaberta e me antecipei:
- Seu Gumercindo, estou esperando há horas. Preciso ser atendida ainda hoje.
- Volte amanhã, minha filha. Dos sete que estão aguardando, só vou atender dois.
Nem sei como atravessei a sala. Liguei a caminhonete e fui embora, na velocidade de um raio.
Enquanto um lado meu se exasperava, o outro dizia mansamente que deveria voltar no outro dia. “Por que saí da capital?” “o que vim fazer neste fim de mundo?” sou um bicho urbano, só sobrevivo no asfalto.
Chegando a casa, lavei o rosto e tomei um café quente. Meu marido entrou com as botas enlameadas e uma expressão feliz. Tentei colocá-lo em sintonia com meus sentimentos, enquanto contava o acontecido. Ele sorriu, olhou-me com olhos de pai e disse:
- Esquece esse homem. É crendice desse povo. Se fosse um adestrador de gatos, cachorros, eu levaria nossos animais até ele, mas adestrar sentimentos... Meneou a cabeça e se encaminhou para o pomar.
Tomei um longo banho e, mais calma, decidi que voltaria no outro dia. Ainda que fosse para desmascará-lo.
Durante duas semanas não consegui ser atendida. Passei a levar lanches, a conhecer as pessoas pelo nome,trocar experiências. Pude perceber como era linda aquela fazenda e os seus azulejos portugueses.
Numa manhã, andava pelo pomar, quando uma criança veio a meu encontro, dizendo que havia chegado a minha vez.
Experimentei uma sensação nova. Atravessei sem pressa a sala. Seu Gumercindo me recebeu com um sorriso:
- Agora está bem melhor! Nos próximos encontros, trataremos de outras necessidades que possam aparecer.
- Do que o Senhor está falando?
- O sentimento que regia a sua vida era a ansiedade. Queria que o mundo seguisse seu relógio interior que pulsava aflito. Acredita que poderia ser feliz aqui, com tanta urgência?
- Em nenhum outro, muito menos neste.
- Quanto tempo mais esperaria para falar-me?
- O que fosse preciso...
- Fico feliz por ter conseguido tão rápido
Tive vontade de beijar-lhe as mãos, mas não o fiz. Agradeci-lhe somente e voltei para casa serenamente.
Stella Tavares


Naturalmente, trata-se de uma ficção, um conto que publiquei no livro que teve o mesmo nome em 2007. Na realidade não podemos contar com esse prestimoso serviço, mas podemos contar com o nosso bom senso, nossa vontade de aprender e aprimorar nossa personalidade. Apesar de não se tratar de um blog literário acredito que este texto, assim como o primoroso texto de Fernando Pessoa, encaixa-se como uma luva aos assuntos que aqui tratamos. Gostaria que os enxergassem como uma forma ilustração.

14 comentários:

Regis Copperfield disse...

Muito bom, preciso me lembrar sempre deste texto.

Parabéns
Abraços

José Miguel de Oliveira disse...

Gostei muito... fiquei feliz pelos azulejos portugueses. É um conto fantástico, com alguma ironia à mistura. Como posso adquirir este livro em Portugal?

T@CITO/XANADU disse...

As vezes recorro a automedicação.
Agora, já estou pensando em como farei para me autoadestrar...(rs)
Parabéns.
Tácito.

A Monga e a Executiva disse...

Adorei o blog!!!!!

EdLuan disse...

Fantástico, profundo e iluminador. Amei seu blog.

Abração

Anônimo disse...

Nossa, realmente muito bom, você escreve muito bem..
Adorei o blog, a respeito do tal livro, tenho umas dúvidas sobre esse lance de publicar, se puder tirá-las para mim ficarei muito grato, msn: valcipb@msn.com

Claudia Balsabino disse...

Olá, vim retribuir a sua visita no meu blog e fiquei maravilhada com o seu cantinho. Parabéns, você escreve absurdamente bem e por isso já estou lhe pedindo licença para indicar o seu blog nos meus favoritos e já sou sou seguidora do seu blog e sua mais nova fâ também.
Obrigada por nos presentear com textos tão ricos, virei sempre aqui quando precisar lavar a minha alma!
Um grande beijo!
Cláudia

dora tavares disse...

Stella,


É sempre um prazer reler seus trabalhos tão bem elaborados, uma pérola.

Continue e sucesso!

Dora Tavares

Pena disse...

Linda Amiga:
Um texto "fortíssimo" de talento e génio literário sensível e extraordinário.
Este:"O Adestrador de Sentimentos" dá-nos uma visão clara e brilhante do mundo da paciência contra os nosos impulsos, a firmeza do Ser/Sentir e Estar, a beleza das prioridades que devem nortear de oportunidade os nossos sentimentos, pensamentos, postura e conduta na vida. O "arranjo" LITERÁRIO É PERFEITO. Linda, a mensagem que o texto transmite.
Excelnte! Adorei.
Tem talento. Tem génio. Tem qualidades maravilhosas e doces.
"Arrasa" em palavras tudo o que de belo se pudesse dizer.
Enfim, notáve! Brilhante, escritora. Sublime.
Beijinhos de um respeito profundo e estima amiga.
Sempre a admirá-la

pena

Bem-Haja, amiga. É importante no meu "cantinho".
Uma preciosidade de ouro muito valiosa e rara, acredite?

As Tertulías disse...

Querida, cheguei atrasado e só hoje posso retribuir o gostoso abraco que voce mandou...
Te incluí na minha página (Blogs que sigo!) bem "oficialmente".
Beijos e lambrabcas a Resende... Ah, qie saudade de Penedo...

Wanderley Elian Lima disse...

OLá, passei para conhecer seu blog,. Parabéns pelo bom gosto na escolha e produção de textos.
Um abraço

Valdemir Reis disse...

Olá é sempre com grande alegria que retorno para este importante espaço. Honrado e feliz. Quero agradecer sua amizade, atenção e gentileza. Muito obrigado! Parabenizo você pela harmonia e qualidade deste trabalho. Grande tema, ótima escolha, excelente texto, relevante, uma preciosidade, gostei. Valeu ter passado aqui. “Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” Cora Coralina. Encontrar-nos-emos sempre por aqui. Aguardo sua visita, passa lá! E volte sempre! Tenha um agradável e feliz fim de semana. Muita paz, brilho, proteção e sucesso. Tudo de bom, prosperidade... Fique com Deus. Forte e caloroso abraço.
Valdemir Reis

entrelinhas. disse...

"iluminador" é a palavra exacta :)

beijo!
sara

Rosemildo Sales Furtado disse...

Olá Stella! Belíssimo texto, muito bem coordenado, uma verdadeira lição.
O mesmo lembrou-me quando meu irmão saiu de Recife, e foi à Belo Horizonte fazer um teste, para ingressar numa empresa. Apresentou-se as 7:00hs., a secretária mandou que o mesmo se sentasse e esperasse. As 11:00hs.,saiu para aumoço, retornou as 13:00hs., esperou, e as 17:00hs., mandou-o para o hotel, com a orientação de voltar no dia seguinte, no mesmo horário.
Tudo isso se repetiu durante três dias. Depois foi mandado de volta para Recife, com a informação de que lá, saberia o resultado.
Resultado: "Teste de Paciência".

Fiquei muito feliz com a tua visita e, principalmente, por teres te tornado seguidora do meu (nosso) humilde espaço. Isso somente aumenta a minha responsabilidade de melhorar tudo aquilo que crio e escrevo.

Beijos,

Furtado.