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Romance escrito em tempo real

domingo, 27 de setembro de 2009

Um bicho de sete cabeças

A primeira entrevista que fiz a cerca da insegurança foi no ano de 1990, quando comecei a trabalhar o livro “O Manual do Inseguro” Lembro-me que disse a uma pessoa amiga se ela poderia me conceder uma entrevista . Lembro-me que ela prontificou-se, marcou data e hora com grande entusiasmo. Na hora marcada adentrei em sua sala e ela recebeu-me com um sorriso e uma cerimônia que não mais existia entre nós. Éramos íntimas e já tínhamos pulado esta etapa fazia algum tempo. Achei que o melhor a fazer seria colher o primeiro do que seria uma série de depoimentos . Nunca mais consegui esquecer a expressão de Eleonora, decidi batizá-la assim para que nos tornemos logo todos íntimos. A minha pergunta foi a seguinte: ¨_Eleonora, você alguma vez já se sentiu insegura? Senti que a partir daquele momento todos os salamaleques e rapa-pés seriam interrompidos. Ela fuzilou-me com os olhos e disse com voz grave:_Pareço uma pessoa insegura?_Claro que não. A pessoa não precisa ser insegura para sentir insegurança. Pode acontecer em diversos momentos da nossa vida. infância, adolescência, no primeiro dia de aula, antes do primeiro beijo, sei lá... O que interessa é a maneira como lidamos ou nos libertamos. Conheço pessoas que passaram pela vida sem nunca conseguirem esta libertação. Sempre acreditei que falar abertamente sobre o assunto, trocar experiências, poderá ajudar a muitas pessoas... _Pois eu lhe asseguro que comigo isso nunca aconteceu. Não sei do que você está falando e até acredito que você esteja perdendo tempo comigo. Não tenho como lhe ajudar. Daquele momento em diante percebi que a entrevista havia terminado, quiçá nossa amizade. Agradeci e voltei para casa. A minha vontade a princípio foi parar por ali. Nunca mais tocar nesse assunto que, aos poucos fui descobrindo, mais parecia um bicho de sete cabeças para tantos. Acredito que causaria menos estranheza ou dissabor se lhes perguntasse se eram egoístas, se mentiam com freqüência, com quantos anos perderam a virgindade..Descobri que o mundo estava cheio de pessoas seguras que se ofendiam por falar no assunto.. A amizade entre Eleonora e eu nunca mais fora a mesma. Quando comecei a escrever esse blog imaginei que não teria seguidores, mas tive a grata surpresa de conhecê-los e trocar experiências de forma tão verdadeira, enriquecedora. Mudou a década, o século, ainda assim, de vez em quando ainda me deparo com algumas Eleonoras, mas o que mais conheci foram pessoas generosas e que estão sempre dispostas a colaborar e enriquecer ainda que anonimamente. A todas essas pessoas anônimas e também aos meus bravos, queridos seguidores e leitores recebam o meu carinho, admiração e alegria por tê-los sempre perto .

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A alegria nossa de cada dia

Quem disse que só o sofrimento ensina? A alegria também é uma excelente professora. Ensina-nos a leveza e o quão terapêutico é um sorriso, uma gargalhada. É ela, a alegria, que nos prepara e alicerça para momentos difíceis, delicados, tristes. Ninguém está livre deles. Quando ainda não havia descoberto o poder da alegria, bastava passar por algum momento adverso para despedir-me dela sem mais delongas porque achava que adversidade e alegria eram incompatíveis. Hoje vejo que não são. Muito pelo contrário, é exatamente aí que mais carecemos de sua companhia, do seu apoio. Alegria é pródiga, generosa, acessível a todos que a buscam. E não precisa ir muito longe para encontrá-la. Nós é que complicamos quando criamos barreiras, condições para recebê-la. Quando dizemos que seremos felizes quando conseguirmos um emprego melhor, ou nos tornarmos mais magras,concluirmos um curso, nos casarmos., uma infindável lista.. Vamos afastando-a de nós, deixando-a por conta de um futuro, como se fosse ele o responsável por capturá-la e trazê-la até nós. Tem uma frase do filme “O Todo Poderoso” que é perfeita e é quando Deus (Morgan Freeman) diz: “As pessoas mais felizes do mundo voltam fedendo para casa no fim do dia”. Não é preciso que tudo esteja perfeito para começarmos a sentir alegria. Vamos aprendendo a alegria quando um acontecimento ruim não apaga tudo de bom que recebemos pela vida , todas as bênçãos que nos foram dadas e quando ao invés de listar todas as necessidades relembramos todas as bênçãos recebidas, enumerando motivos para agradecer e nos alegrar. Se não mais nos apartamos da alegria veremos que mais temos a agradecer que a pedir. Se nos apartamos dela uma única necessidade apaga todas as conquistas. Talvez porque alegria e esperança estejam sempre de mãos dadas. Foram décadas para descobrir que felicidade não é sinônimo de vida perfeita ou gente perfeita. Tudo que precisamos é de uma alma de aprendiz, estarmos sempre dispostos a aprender a melhor maneira de ser feliz.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Quando chegam as lembranças

Existem momentos na vida em que temos que fazer opções importantíssimas, necessárias. Foi em um desses momentos da vida que tive que tomar uma decisão assim, fundamental e com uma precisão cirúrgica. Uma cirurgia de alma, diria, quando decidi "enterrar minha infância a sete milhões de palmos da terra". Justamente por ela ter sido tão especial, permeada por tanto carinho que vinha de uma mãe que nem precisava de falar para que nos entendêssemos, seis irmãos dos quais eu sou a caçula e um pai que admirava profundamente pela sua aguçada inteligência, intimidade com as palavras, retidão de caráter e um nome que, por pura honestidade, abria qualquer porta.Doce e delicada bagagem que foi feita com carinho até que, aos dezoito anos, perdi minha mãe. Justo nós duas que não nos separávamos. Até os dezessete anos, bastava meu pai viajar para eu me aboletar em sua cama e dormirmos juntas e felizes como duas adolescentes. Sempre fui muito calma, tranquila e agradecida a Deus por tudo que recebo. Ainda que esse "tudo" inclua uma perda irreparável. A partir daí toda nossa bonita convivência se transformou em lembranças que de tão vivas faziam-me arder em febre. Febre emocional. Foi a partir daí que meu pai e eu decidimos que já era hora de darmos um novo rumo a nossas vidas e assim fizemos. Ele se casou novamente com uma ótima pessoa que lhe resgatou o brilho nos olhos e nos abençoou com dois irmãos e eu me mudei para Belo Horizonte e fui trabalhar em um banco. Foi nessa época que decidi que deixaria suspensa minhas lembranças, guardadas, onde eu não pudesse vê-las e pus-me a viver o dia-a-dia. Muito tempo se passou até o dia em que descobri que já conseguia lembrar sem dor, sem febre. Hoje minhas lembranças moram comigo, divide a vida, se misturam e se entrelaçam com o presente. E como diz minha música preferida " toda vez que o adulto balança o menino me dá a mão"...
Benditas lembranças que iluminam e povoam nossas almas e são intransferíveis, únicas assim como o traçado de nossas mãos.

Stella Tavares

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Carnaval

Dizem que é carnaval, mas eu não acredito. Acreditaria se estivesse me arrumando para dançar no clube. Desenrolando os meus sapatos dourados, de um solado tão fino que dava para sentir cada pedrinha da minha rua descalça. A banda do Zelinho tocando “Carnaval é loucura”, hino carnavalesco de sua autoria. Minha mãe sentada, observando a minha dança singela e verdadeira.
Acho que perdi a loucura por carnaval, mas, também já perdi a loucura por tanta coisa. Conheci outras modalidades. Inclusive, a de ser uma pessoa sem passado. Por opção. Fui retirando a sua importância num jogo que só eu sabia jogar. Cada pessoa que morria, fazia enterrar junto com elas as suas lembranças.
Foi assim que enterrei minha infância, a sete milhões de palmos da terra e achei ter descoberto a maneira mais indolor de se viver. Quando dei por mim, estava totalmente sem memórias, com dificuldade para me lembrar de coisas simples, como onde havia deixado meus óculos ou o molho de chaves.
A memória me armou uma falseta e só havia uma saída: ir ao meu encalço palmilhar cada rastro num resgate salva-vidas. Assim nasceram esses contos e crônicas, como o restaurar de uma pintura.

(Extraído do livro "O Adestrador de Sentimentos" de Stella Tavares publicado em 2007)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Camisa Marron

Arlete sempre fez o gênero do “se não entendo, logo, não existe”. Afirmava que vivia feliz assim. Segundo a própria, “para que ficar buscando explicações para o inexplicável?”, até o dia em que o inexplicável desafiou-lhe os sentidos.
Estava ela trocando os lençóis da cama, quando o marido parou no corredor e olhou-a de uma forma desconhecida. Estranhou aquele segundo de silêncio, onde tanto se disse e a camisa marrom, tão bem passada, parecia ter saído de uma tinturaria.
Definitivamente, não foi ela que a tinha passado. Jamais. Para passar assim, precisaria de anos de treino, o que fugia de seus objetivos. Diante daquele olhar, quem se importava em saber quem passara a tal camisa?
Lembrou-se de que a camisa estivera no cesto de roupas sujas. Mas, como pensar nisso agora, diante de um olhar tão convidativo? Queria se fartar, jogar para o alto a mãe que era, a dona-de-casa, abrir, enfim, a jaula dos sentidos. E assim fez. Sentia-se bêbada e todos os outros sonoros e sugestivos proparoxítonos.
Do fim do corredor, ouviu um barulho de água caindo e o som do chuveiro ligado na voltagem mais forte. Tentou lembrar de quem poderia estar tomando banho, já que as crianças não estavam em casa.
Num ato heróico, desprendeu-se dos braços do marido, atravessou o corredor e abriu a porta do banheiro, sem pensar muito no que fazia. Lá estava ele, seu marido, debaixo do chuveiro. Todas as gotas do mundo pareciam escorrer pelo seu dorso. Olhou o cesto de roupas e a camisa marrom lá estava. Voltou ao quarto e o dono da camisa impecável havia desaparecido.
Arlete não conseguiu entender o que vivera. Nunca contou a mais ninguém, senão para mim, já que somos comadres.
Stella Tavares

Extraído do livro: O Adestrador de Sentimentos de STella Tavares

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Reconstrução

Jamais seria capaz de imaginar-me em um lugar como àquele, justo eu, avessa ao uso de qualquer palavrão. Não dizia bunda e nem sovaco, que nem é palavrão, mas sempre achei uma palavra feia.
Aqui estou a fazer uma coisa que julgava que só as mulheres excessivamente maquiadas, com os seios saltando do decote seriam capazes de fazer. Estou novamente fugindo das palavras, achava que só as prostitutas seriam capazes de fazer. Será que me transformei em uma a minha própria revelia? Não! Afora as grandes catástrofes nada acontece de um segundo para o outro. É tudo uma questão de construção.
Como aquela sala que nem minha era, mas como um espelho cristalino ora me cegava, ora despia-me a alma. Às vezes penso que a alma da gente é como um pulmão. Vai mudando de cor dependendo dos nossos abusos. Cor de grafite, sinto a cor de minha alma frente àquela sala que denunciava uma rotina, um construir de tijolinhos.
A poltrona de frente para o sol da manhã, quase posso vê-lo sentado em manhã fria, com uma xícara de chá fumegante e um pratinho de torradas que jamais passariam pelo meu controle de qualidade: Quase saídas de um incêndio! Era como ele gostava.
Um pouco de poeira na sala que ainda não fora arrumada. São oito horas da manhã e sinto-me estupidamente intrusa.
O cheiro do café fresco espalha-se pela sala e corredor.
_Você nem tocou no pão de queijo. Coma enquanto está quentinho. É assim que o Alberto gosta. Acho que todo mundo...não é? Riu meio sem graça.
_Volto outra hora com mais tempo. Pego no trabalho daqui a pouco.
_Não sei por que ele demora tanto. Saiu para comprar pão, jornal e até agora... Deve estar de papo com o dono da banca.
Senti vontade de atravessar feito alfinete, ir para casa, tomar um longo banho de água benta, esbofetear-me frente ao espelho até que o meu rosto fique da cor da minha alma naquele momento: rubra, consumindo-se em chamas ou então tirar-lhe aquele avental maldito, que tanta pureza lhe trazia. Ordenar-lhe que se enfeite, que use água de cheiro, levante os cabelos e coloque uma presilha.
Descobri naquele momento que o casamento, muitas vezes, abençoa as mulheres, mas aquele homem nada, nem o renascimento o salvaria.
Stella Tavares

(Extraído do livro "O Adestrador de Sentimentos" de Stella Tavares - publicado em 2007)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Convite www.curabulalivroclube.blogspot.com

Estou publicando também no curabula livroclube. Sentirei muito feliz em poder contar com sua visita. Uma linda semana para todos.
Bjs.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Quarto de solteira

O quarto e ela eram sempre os mesmos. Desde a mais tenra infância, até os dias de hoje. Luzia sempre dormiu no mesmo quarto. Filha única, nunca precisou dividi-lo com ninguém. Mantinha impecável aquele pequeno e perfumado ambiente. Em todas as gavetas, sachês aromáticos e biscuis. Também seu corpo recebia caprichos extremos: sua pele clara, cheirando à lavanda, parecia estar sempre saindo de um longo banho.
Suas amigas foram-se casando e era sempre convidada para madrinha. Comedida, recatada, não pensava mais em casamento. Como as moças de sua época, tinha um enxoval pronto, bordado por ela, com a ajuda da mãe que era exímia bordadeira.
De quando em quando, retirava o enxoval do armário e o colocava ao sol para aliviar o cheiro forte de roupa guardada. Por ela, já teria presenteado uma noiva sem recursos, mas foi pela mãe impedida, pois acreditava que a filha conseguiria um pretendente viúvo ou desquitado, que a quisesse desposar e, um enxoval como aquele era raro nos dias atuais.
Aquele pequeno quarto parecia represar o tempo, naquela casa sem urgências, onde tudo era artesanal, sem conservantes e arroubos. Ali não havia choro, mas, também pouco se ria. As vozes não se elevavam, não existiam sobressaltos, contratempos ou agonias e nem comemorações. Uma vida morna que repelia as mudanças.
Se o tão esperado viúvo aparecesse, Luzia nem saberia o que fazer com ele e talvez nem mesmo ele se sentisse à vontade, diante daquele imaculado corpo e sem expectativas, em meio a lençóis de linho bordado em richelieu e ponto de cruz.

CONTRAPONTO:
Do outro lado da cidade, vivia Jandira, uma mulher que sorvia a vida em largos goles.
Recato não havia e o seu quarto de moça, se é que foi um dia, não deixou vestígios. Jandira parecia já ter nascido mulher feita.
Solidária sempre foi, já que atravessava a cidade, equilibrando um colchão na cabeça para doá-lo a desabrigados da sorte.
Os homens por ela suspiravam. Seu corpo ardente exalava exóticos odores.
Viúvos, solteiros, separados sentiam-se à vontade e seus corpos jamais reclamaram por lençóis bordados em cambraias de linho...

Stella Tavares

(Extraído do Livro "O Adestrador de Sentimentos" de Stella Tavares, publicado em 2007)